Thursday, January 13

Ontem à noite  você disse que não era difícil, disse um pouco irônica que bastava começar, que no começo era só fingir e logo depois, não muito depois, o fingimento passava a ser verdade, então a gente ia até o fundo do fundo. Eu te disse que estava cansado de cerzir aquela matéria gasta no fundo de mim. Perguntou se o que me doía era a consciência. Eu te disse que o que me doía era não conseguir aceitar minha pobreza. E que eu não sabia até quando conseguiria disfarçar com outros panos aquele outro, puído e desbotado, e que eu precisava tecer todos os dias os meus dias inteiros e inventar meus encontros e minhas alegrias e forjar esperas e me cercar de bruxos anjos profetas e que naquele momento eu achava que não conseguiria mais continuar tecendo inventos. Em silêncio o telefone calado ao lado de minha cama. O telefone em silêncio no silêncio.Então eu te disse que me doíam essas esperas, esses chamados que não vinham e quando vinham sempre e nunca traziam nem a palavra e às vezes nem a pessoa exata. E que eu me recriminava por estar sempre esperando que nada fosse como eu esperava, ainda que soubesse. Perguntei se me doendo também te doía. E você não disse nada. Não te disse que comigo seria mais difícil do que com ela. Não dissemos, mas concordamos no silêncio cheio de livros e jornais entre nossas duas camas, que querias a salvação e eu a perdição - ainda que nos salvássemos ou nos perdêssemos por qualquer coisa que certamente não valeria a pena.Nem era preciso dizer que não era preciso dizer: eu era o teu lado esquerdo e tu eras o meu lado direito: nos encontrávamos todas as noites no espaço exíguo de nosso quarto. Eu viajava no meio de pinheiros brancos quando disseste que a única coisa que havia desejado o dia inteiro era chorar, num canto qualquer, sem motivo, sem dor, até mesmo sem vontade, de mágoa, de saudade, de vontade de voltar. Não haviam permitido, inclusive eu. Mas percebes tanto, quando eu me dobrava em remorso pediste pra que eu cantasse cantigas de ninar, que cantei com a voz rouca de cigarros e drogas. E enquanto adormecias, lembrei da tarde. Era feriado na manhã, na tarde e na noite de ontem à noite. Eu lembrava da tarde e pedia para bichos-papões saírem de cima do telhado e lembro tão bem que ainda que não tivesse sido ontem, continuaria sendo ontem na memória.Foi então que começaste a chorar e eu sentei ao teu lado e não compreendendo te disse que não, te disse inúmeras vezes que não, que não era bom, que não era justo, que não era preciso - mas chorava e dizia que era tão bonito quando ele tocava violão cantando aquela música, dizendo que era melhor ser alegre que ser triste, ficava te machucando no fundo de tudo o que dizia e pensava que queria chorar um, três, cinco, sete dias sem parar sentindo vontade mansa de voltar. Mais tarde, bem mais tarde, diríamos rindo que não havíamos feito tudo isso para desistir agora, sem mais nem menos, no meio dum feriado qualquer, e que agora a gente só tinha mesmo que continuar porque a casca tinha endurecido - e riríamos muito, mais tarde, cheios de vitalidade e vontade de abrir janelas - mas por enquanto chorava com a cabeça escondida no travesseiro, e eu não compreendia.Chovia lá fora e eu estava parado no meio do quarto. Estava parado no meio do quarto e olhava para fora. Olhava para fora e repetia: nunca esquecerei daquela tarde de chuva.